Uma mulher verdadeiramente submissa deve ser estimada, valorizada e protegida, pois só ela pode dar a um homem o dom do domínio.
Anne Desclos
Desde que minha prima Érika Leão, taróloga boa demais da conta, divulgou no seu Facebook a capa de O CONTRATO, já não é segredo que estou trabalhando no meu novo livro. A iniciativa da prima foi íntima. Segundo ela, “só para as amigas mais próximas”, que já haviam lido a primeira versão do trabalho, um romance que escrevi nos idos da década de 1980 e que, à época, se intitulava “Paixão Latina”. De qualquer forma, a perspectiva intimista no Facebook, se revelou uma excelente estratégia de marketing e por este motivo desisti de transformar o ocorrido num episódio de “Casos de Família” e cancelar nossa participação no “Programa do Ratinho”. Mentira. Exagero. (risos). I Love You, Tia Érika. E, pausa para o merchant: a prima faz consulta de Tarô online, viu? Acesse: Érika Leão, Taróloga.
Sigamos. Sem mais delongas, eis a capa do meu novo livro.
Sentiu a vibe, Amade? Yes, Honey. O próximo livro da Rosa tem uma pegada BDSM total. Mas, é claro, com aquelas reviravoltas que você conhece e adora. Hoje, só vou te mostrar a capa, mas adianto que o romance está indo de vento “na popa” e já passei do primeiro ponto de virada. Isso quer dizer, em jargão literário, que estou escrevendo a segunda parte da história, pois a personagem principal já aceitou a sua jornada. Por agora, vamos conversar um pouco sobre a pesquisa para a construção do romance.
Como você sabe, nenhuma obra nasce do nada, descendo da cabeça do escritor ao teclado, numa sessão de psicografia literária. Quem dera. Fosse assim, eu já teria intimado o Oscar Wilde a comparecer numa mesa branca, em troca de uma garrafa de absinto. A bem da verdade, a parte mais fácil de um livro é a sua escrita. Porque, antes de qualquer esforço descritivo, inclusive da estruturação das ideias, é necessário arar o terreno com pesquisa. No caso de O CONTRATO, era necessário conhecer aspectos do universo BDSM e, por extensão, a literatura que o tomou por tema.
Alerta. Há mais coisas entre dominadores e submissas do que faz supor 50 tons de cinza, viu? E se você acompanha nossas prosas de forma consistente, já deve saber que detesto o livro da Erika. A Erika James, bem entendido. Minha birra com os 50 tons nada tem a ver com pedantismo. Certo, talvez seja mesmo chatice de escritora chata, conforme já admitido em outra oportunidade. Leia aqui. No entanto, considero a história lenta, com personagens inconsistentes, imersos num universo com conexões de realidade bem pouco verossímeis. Além disso, diante do tema BDSM, acho as escolhas de substantivos para algumas descrições, no mínimo risíveis. Caso você não tenha notado, Christian Grey não tem pau. Tem não, Amade. Sério. Nem pau, nem pica, nem rola ou qualquer coisa do gênero. Ele é dono e proprietário de uma “grande extensão”. Me ajuda. Sem falar que nunca usa um preservativo. Não. Ele se apodera de pacotinhos brilhantes. Pode ser que em algumas das muitas páginas que pulei, de tédio, o Sr. Grey tenha ganhado um pinto ou usado uma camisinha. Vamos torcer.
De qualquer forma, a minha opinião sobre 50 tons de cinza não diminui nem uma mísera grama do seu brilhantismo. Seja da autora, dos seus editores ou de ambos, que transformaram o trabalho em um fenômeno de vendas absolutamente sensacional. Não vou, e nem devo entrar no debate de “por que o romance se tornou um best seller”. Gente bem mais qualificada do que eu, já gastou fosfato e teclado tentando explicar seu sucesso. Da minha parte, entendo que antes da proposta BDSM o que existe ali é uma história de amor. E mais. Uma reedição atualizada do nosso secular pacto romântico literário: a Cinderela. Já vimos esse filme, esse livro, essa história, em trocentos títulos espalhados por aí. Da saga Crepúsculo – da qual os 50 tons nasceu como fanfic – ao próprio Harry Potter. Afinal, o bruxinho bem pode ser interpretado como uma versão adolescente e masculina da Gata Borralheira...
Assim, como já nem gosto muito de ler romances, conforme postagem confessa aqui, descartei as sombras do Sr. Grey e, nada mais natural, eleger como ponto de partida da pesquisa a releitura da História d’ O, de Pauline Réage. Para quem não conhece, a narrativa do livro publicado em 1954, centra-se em “O” uma fotógrafa bem sucedida, desarvoradamente apaixonada pelo amante, ao ponto de satisfazer todas as suas vontades. Para tanto, aceita ser levada a um castelo, nos arredores de Paris, no qual é submetida a um rigoroso treinamento destinado a transformá-la em uma escrava sexual. Não só do amante, que muito esporadicamente aparece por lá; mas de todos os homens que frequentam o lugar. Posteriormente, “O” é entregue ao Senhor Stephen, que compartilha a posse da moça com o amante inicial e por quem “O” vai ficando cada vez mais apaixonada. Seu novo dono leva ao limite a relação “dominador-submissa”, marcando a moça com ferro e submetendo-a a uma série de práticas sexuais sadomasoquistas.
Capas do livro "História de O."
Tomada ao pé da letra, a história é terrificante. Como disse a personagem central de A casa dos Budas Ditosos, de João Ubaldo Ribeiro, tirada do campo da fantasia, a vida de O é uma merda. Eu concordo. Mas o fato de O ser meio doida e claramente abusada por uma horda de machos escrotos, a verdade é que se trata de um dos ícones da literatura erótica ocidental. E, de não somenos importância, escrito por uma mulher. Vale um trechinho:
“Este é o discurso que em seguida dirigiram a O: "Você está aqui a serviço de seus senhores. Durante o dia, fará o trabalho que lhe confiarem para a manutenção da casa, como varrer, arrumar os livros, dispor as flores ou servir à mesa. Não há serviços mais pesados. Mas deve abandonar imediatamente o que estiver fazendo, à primeira palavra ou ao primeiro sinal de quem lhe ordenar, pelo seu único serviço verdadeiro, que é o de entregar-se. Suas mãos não são suas, nem seus seios, nem particularmente nenhum dos orifícios de seu corpo, que podemos esquadrinhar e nos quais podemos penetrar à vontade. Como um sinal, para que esteja sempre presente ao seu espírito, ou o mais presente possível, de que perdeu o direito de se esquivar, diante de nós nunca deverá fechar totalmente os lábios, nem cruzar as pernas ou aproximar os joelhos (como viu que lhe proibiram assim que chegou). Isso significará, aos seus próprios olhos e aos nossos, que a sua boca, o seu ventre e os seus quadris estão abertos para nós. Diante de nós, nunca tocará seus seios: eles são alteados pelo espartilho para nos pertencerem. Durante o dia, portanto, deverá ficar vestida, mas levantará a saia sempre que alguém lhe ordenar, e quem quiser poderá utilizá-la com o rosto descoberto _ e como quiser _ com restrição entretanto do chicote. Este só lhe será aplicado entre o poente e o nascer do sol. Mas além da aplicação que será feita por quem desejar, poderá ser também punida com o chicote à noite, por ter faltado a alguma regra durante o dia: seja por não ter tido suficiente complacência, ou por ter levantado os olhos para quem vier falar-lhe ou possuí-la: nunca deve olhar-nos no rosto. Neste traje que usamos a noite, e que estou usando agora, se deixamos o sexo descoberto, não é pela comodidade que também se poderia obter de outro modo, é pela insolência, para que seus olhos se fixem nele e não se fixem em mais nada; é para que aprenda que este é o seu senhor, a quem seus lábios foram destinados em primeiro lugar. (RÉAGE, 1972, p.18).
A História de O escandalizou a França da década de 1950 e dado o tom atrevido e explícito da narrativa, apostava-se que Pauline Réage era um homem. Aliás, até hoje, muita gente pensa assim. Vale lembrar que esta dedução é prima irmã de um ancestral preconceito de gênero, que credita às mulheres uma escrita “suave”, pois destinada a um público leitor mais “sensível”. Este raciocínio doma as sexualidades, separando em campos distintos o que deve ser uma literatura erótica para homens e outra para mulheres. Neste segundo campo, encontra-se, portanto, o atual espectro do “Mommy Porn”, onde os homens não tem pinto nem rola e sim uma “grande extensão”. Me ajuda.
Pauline Réage é sim, um pseudônimo. Mas de Dominique Aury. Que, por sua vez, era o pseudônimo de Anne Desclos (1907 -1998), uma respeitadíssima escritora e intelectual francesa, dona da epígrafe com a qual abri o post. Eis a moça:
Além de poetisa, jornalista, tradutora e crítica literária famosa, foi diretora de coleções de uma das mais importantes editoras do mundo, a Gallimard e chefe de redação da revista literária Nouvelle Revue Française. Aliás, em 1975, quando a História d‘O foi transformada em filme, causando uma onda de furor moralista, que exigia a volta da censura, Anne Desclos ocupava o cargo de Conselheira do Ministério da Educação francês...
Sem dúvida, o meu CONTRATO, guarda poucas semelhanças com a História d’O. Mas, dentre as leituras que fiz para pavimentar a minha própria narrativa, a obra de Anne Desclos foi fundamental.
Beijooooooooooooos da Rosa e até a próxima prosa!
REFERÊNCIAS
RÉAGE, Pauline. A história de O. São Paulo: Brasiliense, 1972.
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