Beijos de sombra e sangue- capítulo 2.
- R. M. Ferreira
- há 4 dias
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toques na escuridão

Nos dias que se seguiram à visão no espelho, uma rotina se instalou, silenciosa e inevitável, como o avanço da penumbra sobre as pedras úmidas de Edimburgo. Na verdade, um ritual noturno tecido como um segredo em volta de Catariana, fio... a fio.
Começou com a insônia, pontual e paciente. O corpo cedia ao cansaço, mas a mente se mantinha em chamas, tomada por uma vibração intensa. O quarto, até então um abrigo de quietude, ficava carregado, denso, o ar contendo a promessa de um trovão que nunca se cumpria. E quando a insônia chegava, vinha com ela um silêncio absoluto, do tipo que respira junto com quem o escuta.
Reconhecida a insônia, tomava um banho quente e, em seguida, o chá de lavanda. No início, tentativas inglórias de relaxar e adormecer. Mais tarde, parte da ritualística de se sentar diante da máquina de escrever, vestindo o roupão de toalha e um par de pantufas macias.
Depois da meia noite, atirava-se à escrita, compartilhando com a antiga Royal idêntico frenesi. Uma espécie de pacto, se realizando através das palavras.
As páginas de Beijos de Sombra e Sangue saltavam cada vez mais intensas. Kaelen, o vampiro que nascia da tinta, ganhava corpo, textura e respiração. Suas investidas sobre Lyra ecoavam no corpo de Catariana como lembranças, aflorando dos seus próprios sentidos. A pele arrepiava, os seios entumeciam, a vagina latejava. Conseguia até mesmo sentir o cheiro tênue de sangue e sêmen, misturado ao suor quente dos corpos...
Escrever a história de Kaelen e Lyra, tornou-se um paradoxo. Se por um lado exorcizava seus fantasmas... por outro, os trazia de volta. Tanto, que não demorou muito para que seu ritual de insônia e escrita se transformasse em... invocação.

Surgiu como um corte de frio, súbito, que não entrou pela janela, mas do antigo espelho na parede. A temperatura despencou e um zumbido gélido percorreu seus braços, das mãos às têmporas, o corpo reconhecendo o extraordinário ao primeiro tremor.
O toque a fez gelar por inteiro. Seus dedos travaram sobre as teclas, o grito fico preso na garganta, paralisado pelo susto e a incredulidade. O frio na nuca era tão real que sentia alguém atrás dela, emergindo da madrugada. Pulou da cadeira, coração aos pulos, olhos arregalados, buscando por alguém dentro da sua casa.
Não havia nenhuma pessoa, além dela mesma.
Mas... havia uma presença.
Um vórtice de ar estava no centro da sala, girando invisível sobre o tapete, bem diante do sofá. Não avançava, nem recuava, meramente aguardando, esperando a sua permissão.
Do fundo da mente entorpecida, os conselhos de Molly e os temores de Zach acenaram para ela. Mas vieram de um lugar tão longínquo que pertenciam à outra existência, outra vida. Catariana nem tentou dar atenção. Deixou que fossem soterrados pela urgência queimando dentro dela, pulsando e pulsando como um aglomerado de estrelas.
– Não me machuque – ela sussurrou.
Não foi uma súplica. Foi um comando. Totalmente sem juízo, mas ainda assim, uma permissão.
O vento frio respondeu de imediato, doce e delicado, enrolando-se gentilmente em torno dela. Ele dizia, sem qualquer palavra ou som:
Jamais... jamais!
Catariana permitiu o toque. O roçar nos cabelos, o sopro no canto da boca, a eletricidade tangível formigando no pescoço. A pele reagia, com a mesma linguagem muda, feita de latejos e resistência, temor e curiosidade.

Ela começou a se inclinar sutilmente, buscando o ponto em que a brisa quase se solidificava. Quando o ar gélido pousava sobre seu ombro, o corpo arqueava de leve, num convite quase involuntário.
A tensão se fortalecia, minuto a minuto, até que a sopro frio serpenteou por suas pernas, correu lânguido por entre os lábios da vulva, subiu por sua barriga e derramou-se em seus seios. Deslizou suave, pesaroso, descendo pelo pescoço, o ombro... até girar uma última vez no centro da sala e desaparecer na direção do espelho.
Catariana engoliu em seco, sem entender nada do que tinha acabado de acontecer. No entanto, a respiração ofegante, desejosa e confusa, mostrava que pela primeira vez na vida... sentia-se... abandonada.
*** *** ***
Ele voltou na outra noite, quando ela escrevia uma cena de paixão, as palavras ganhando vida própria, emergindo com a intensidade de memórias profundamente pessoais.
Quando o toque veio, não foi um simples afago. Mãos de sombra gélida deslizaram lenta e deliberadamente por seu braço, do ombro até o pulso. Um calafrio gelado que, contraditoriamente, incendiou cada centímetro de sua pele.
– Você veio... – ela disse baixinho, a voz abafada, misto de rendição e alívio absoluto.
O toque pesou em seus braços, um aperto delicado que respondia:
Sim, eu vim.
Catariana reclinou a cabeça, fechou os olhos. Foi um consentimento sem palavras, tácito e pleno de significados, como a cena de romance que acabara de escrever.
O desfecho foi a evolução natural da permissão.
Os toques se intensificaram, ousados e inequivocamente sensuais. As mãos de sombra fria abandonaram seu pulso e deslizaram para a curva de sua cintura, moldando-se à sua forma com intimidade. Subiram pela coluna, vertebra por vertebra, um rastro de gelo que incendiava a pele em brasa e deixava os nervos expostos.
Catariana fechava os olhos, entregava-se, completamente apartada da realidade. Envolvida pela escuridão e pelo prazer crescente, uma de suas mãos atravessou a abertura do roupão, até alcançar o meio das pernas, as dobras da vulva.
Afastou as coxas, um gemido lânguido acompanhando o movimento dos dedos sobre o clitóris, seguindo o compasso lascivo da sombra que os guiava. Era um ato solitário, mas intensamente partilhado, como uma comunhão secreta entre seu corpo e o mistério que a tocava.
O prazer a inundou de forma intensa, aguda, quase dolorosa. Catariana esticou as pernas, contraiu os dedos dos pés, arquejou o ventre para cima, na direção “dele”. E gemeu e gritou todas as palavras pérfidas que a boca desconectada da mente conseguia balbuciar. Uma mistura rica de desvario e obscenidade, exigindo mais e mais, porque nunca parecia o bastante.

Quando a onda final a atingiu, um gemido gutural escapou de seus lábios. Assim que o último tremor a abandonou, deixando-a mole e vencida na cadeira, o ar subitamente perdeu o peso, o frio se dissipando lenta e pesarosamente.
Catariana entendeu, no âmago da alma. Ele não queria partir. Entendeu porque foi capaz de sentir a sua frustração, a sua tristeza, enquanto a sombra se reduzia à brisa, soprando seu pescoço e seus lábios, como um beijo de adeus.
– Você precisa ir...? – ela balbuciou, a pergunta pontilhada de angústia.
Não pensou que ele pudesse responder, de fato. Não como ar, incorpóreo, deslizando em volta dela. Talvez ele lhe desse um sinal, quem sabe? Qualquer coisa que permitisse uma comunicação além do toque, mas capaz de explicar aquela sensação tão íntima de conhecimento. Mesmo sendo uma sombra fria, manifestando-se na sala de seu apartamento, Catariana sentia que o conhecia.
A resposta veio, contudo.
Ela observou, abismada, as teclas da sua velha Royal preta, serem pressionadas. Havia um esforço, e era notável. Mas, ainda assim, era rápido o bastante para uma resposta muito além do código monossilábico que ela imaginou.
Não posso ficar. O tempo tem o seu preço. Seis luas já se passaram. Mais seis, até que eu possa voltar.
– Como assim, seis luas...? – ela perguntou, levando a mão ao peito. Não era um gesto pudico nem de timidez. Era dor. A dor profunda que escapulia das palavras prensadas no papel, reverberando as emoções dele, nela. – Seis meses?! Mas você veio ontem...!
No seu mundo, duas noites. No meu, um ano. Um ano de silêncio, sede e espera.
– Tudo isso...? Mas não há outra forma?
Sim. Há um lugar onde o tempo não cobra.
– Onde...?
No sonhar. Posso visita-la em seus sonhos. Se permitir.
– E se eu disser... sim?
Então saberá quem sou e de onde venho.

Catariana hesitou. Aquilo era certo? Por Deus, estava se conectando com uma entidade que não fazia a menor ideia do que era ou do que poderia fazer com ela. Era um pouco tarde para se lembrar dos conselhos da Molly, os mesmos que havia sepultado na noite anterior..., mas se o que ele lhe dizia era verdade... bom, então, ele a visitava com um fervor quase místico. Afinal, seis meses entre uma noite e outra era muito tempo.
Um ano, ele escrevera. Entre a chegada dele, na noite anterior e a próxima visita, teria se passado um ano no mundo que também não sabia qual era. E ele esperaria. Não valia a pena conhecer o ser que se dedicava a atravessar o universo, apenas para tocá-la?
Enquanto ela pensava, todo som cessara. Por instantes sem fim, o silêncio quebrava o ar, vibrando em expectativa. Contando, se dilatando, aguardando sua resposta por todo o tempo que podia. Até que o vento começou a se deslocar, arrastando-se por sua pele, as mãos de sombra fria deslizando em uma dolorosa despedida.
– Sim! – Catariana respondeu. Falou alto, com segurança, com certeza, interrompendo a partida por uma fração de segundos.
Foi o suficiente.
As teclas da Royal se moveram lentamente, até o frio se dissipar, roçando-lhe a pele como um último gesto de posse.
Catariana sentiu o corpo estremecer. Medo, curiosidade e desejo se fundindo numa única emoção. Tudo se misturando até não sobrar fronteira entre o que era dela e o que o outro deixava, letra após letra, datilografada em sua máquina de escrever.
D-A-V-A-R-Y-N-N
Mais que um nome, era um presságio paciente e visceral de que ele a encontraria no instante em que fechasse os olhos. Onde o sonho e o toque se fundiriam em sua nova e inescapável verdade.


Não sei se me apaixono pela sombra ou se morro de medo. Catariana é bem corajosa,. Estou amando!